O DIA EM QUE EU ENFRENTEI E NOCAUTEEI O JACARÉ.
Curitiba, começo dos anos sessenta.
Jacaré era o cachorro do Getúlio.
Não, o Getúlio não era propriamente um cachorro, estava mais para gorila. Era um brutamontes aparentemente retardado que morava numa casinha minúscula na beira do Rio Ivo, com umas “trocentas” pessoas e dezenas de cachorros.
O tipo costumava vagar pela vizinhança do Cine Flórida, na Marechal Floriano, aterrorizando a piazada, “tomando emprestado” alguns dos nossos pertences, tais como dinheiro do lanche e do cinema, doces, balas, brinquedos e o que mais lhe aprouvesse. Ai de quem reagisse, o brucutu enchia de porrada. Tinha tamanho e talento pra tal atividade.
Eu tinha recém conseguido adquirir uma bicicleta Caloi toda invocada, com guidão esportivo (igualzinho aos das mountain bikes de hoje), pneus “balão” (idem), etc. e tal e costumava passear pelas redondezas e alhures.
Na televisão, o seriado mais badalado era o “Bat Masterson”, cujo herói e principal protagonista se vestia feito um janota (essa é de época!), usava um chapéu coco e uma vistosa bengala preta, com detalhes em prata, mormente a extremidade superior, que tinha uma espécie de cabeça avantajada, que servia obviamente de borduna pra tascar nos bandidos e descontentes que cruzavam o seu caminho.
Pois bem, em construí a minha bengala Bat Masterson legítima, usando um pedaço de um cabo de vassoura, (que naquela época eram feitos de madeira maciça e bastante resistentes), acoplado a uma “luva” para junção de canos de uma polegada, feita de ferro e pintada com tinta prateada, o que lhe deu um “toque” charmoso e mortal. Sim, pois se eu tivesse a audácia de bater na cabeça de alguém com aquela bengala, por certo causaria um estrago considerável.
A minha Caloi tinha um “porta bengala” que imitava aqueles coldres longos que os mocinhos e bandidos do velho oeste usavam nos seus cavalos pra carregar as “Winchester”, com as quais dizimavam os pobre índios.
O cenário estava montado. Eu, passeando de bicicleta com a bengala do lado, vez ou outra, pra me exibir, sacava da dita, dava uma rodopiada com ela nos dedos da mão direita e voltava a guardá-la, isso tudo com a bicicleta em movimento e sem me estatelar no chão, believe it or not !
Um belo dia, na Rua Santo Antonio, exatamente atrás do Cine Flórida, ao passar pela frente da casa do Getúlio, lá estava ele, de cócoras na calçada, cercado por uma dezena de seus fiéis cães, entre eles o temido Jacaré, um vira-lata de porte e encrenqueiro feito o dono.
Quando fui me aproximando do grupo, minha intuição já me dizia que tinha tudo pra dar cagada. Mesmo assim, prossegui com minhas pedaladas, desdenhando o perigo.
Não deu outra. Bem na frente do portão, ouço o fatídico comando:
- “Pega, Jacaré!!! “
Obediente, lá veio o bicho, latindo e babando, buscando cravar suas mandíbulas gosmentas na minha pobre carne polaca.
Pedalei com mais força pra ganhar distância, mas o fiadaputa do cachorro não desistia. Estava literalmente nos meus calcanhares.
Lembrei então da bengala, arma poderosa com que o destemido Bat Masterson nocauteava os bandidos e achei que seria o momento de usa-la na defesa dos meus mais legítimos interesses de preservação da saúde.
Saquei-a do seu depositório, dei a famosa rodopiada nos dedos da mão direita, segurei-a pela extremidade mais fina e “PAU”, desci o cacete na cabeça do Jacaré, que deu um ganido enorme e caiu estatelado, para espanto geral dos presentes, inclusive o meu próprio.
Getúlio, entre incrédulo e furibundo, se levanta, saca de uma enorme faca que parecia ter meio metro e parte em minha direção, gritando :
A partir deste momento, não sei exatamente quanto tempo se passou,
mas parecia uma eternidade. Eu pedalando o máximo possível, trocando marchas pra acelerar mais, olhando para trás e vendo aquela mão esquerda enorme quase conseguindo agarrar o bagageiro da bicicleta e aquela quase espada na mão direita do possuído. Virei à esquerda na Brasílio Itiberê e cruzei a Marechal Floriano sem mesmo olhar para os lados, numa autêntica versão infanto-juvenil das famosas “roletas paulistas”, que a gente ouvia falar no rádio.
Obviamente o quase assassino não me alcançou. Fui pra casa com o coração
saltando pela boca e fiquei sem aparecer no cine Flórida e na vizinhança por uns seis meses, talvez. Era preciso ser esquecido, sumir nas sombras, virar um camaleão humano.
O tempo foi passando, não cruzei mais com o Getúlio nem com o Jacaré, fui me esquecendo do incidente e voltando aos meus hábitos normais, arriscando pegar um cineminha de vez em quando, devidamente escondido debaixo de um providencial chapéu ou gorro de inverno, mesmo que em pleno verão.
Então, outro belo dia , descendo a Almirante Gonçalves, já na esquina da Rockefeller, vejo do outro lado da rua , vindo em minha direção, ele, a múmia que atormentava meus pesadelos, Getúlio, o Huno.
Se eu saísse correndo, não teria chance. Resolvi fingir que nada tinha acontecido e que o Bat Masterson não tinha nada a ver comigo. O monstrengo não teria me reconhecido, não fosse a intromissão do Eraldo e do Roberto, dupla de “amigos” e colegas de escola, notórios sacanas e aprontadores contumazes, que não poupariam nem a própria mãe, se tivessem a chance de constrangê-la em público.
Eraldo, num momento inesquecível de sublime babaquice, chama o ogro e tem o seu momento de Judas:
Música de suspense, o suor escorrendo pela ponta do nariz, frente a frente com o temido gigante, espero pelo pior, mas, no entanto, olho dentro dos olhos do meu algoz e vislumbro, por um breve momento, uma alma de criança no monstro. Não desvio o olhar e enfrento a fera, olho no olho e tal qual o Mandrake, mando uma mensagem telepática de perdão, bons modos, calma e tolerância. E falei, firme: - sinto muito o que aconteceu, mas se você não o tivesse “atiçado”, o Jacaré ainda estaria entre nós, feliz da vida...
Após outros segundos que pareceram horas, as palavras de alívio:
E dei no pé, mais do que depressa.